segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A pizzaria


.:A Pizzaria:.
- Não me lembro de ter recebido um só beijo do meu pai.
- Para mim isso sempre foi uma coisa normal.
- Não tinha outra referência.
Brasília passava rapidamente pela janela do carro enquanto Riaj explicava com muita naturalidade, ao amigo Marcel, a ausência do amor de pai na sua vida... Não se viam já havia anos.
Naturais de Itabuna trabalharam juntos quando jovens, tinham muito que atualizar...
Rumávamos para a casa de Sedruol, a quem chamavam de Sedruolzinha, outra ausente há 20 anos...
Riaj relembrava Marcel de fatos ocorridos em Itabuna enquanto a asa sul chegava ao seu final e se aproximava a casa de Sedruolzinha.
Num encontro de trabalho em Brasília eu, um desconhecido paulista, conheci Riaj que há anos mora e trabalha no Rio de Janeiro. Riaj é do tipo esguio. Sério no pensar, firme no falar, alegre no agir e revelador no olhar. O manto espesso construído há anos impede os menos observadores de conhecê-lo, porém, basta um olhar mais atento e nota-se que o manto é transparente.
Conheci também Marcel que depois de trabalhar em alguns estados brasileiros, inclusive São Paulo, mora em Brasília e nos levou por todo o Eixo Monumental para um tour rápido, mas passando por todos os pontos importantes da Capital do país. Do tipo atarracado, Marcel não é muito alto. É solícito e prestativo. A simplicidade lhe confere espontaneidade no falar. É do tipo que se doa já no primeiro contato, sem a preocupação de receber. Transparente como Riaj, porém, sem nenhum manto para protegê-lo de algo que nem ele mesmo conhece.
A questão era: Será que Sedruolzinha iria reconhecê-los? Riaj não tinha dúvidas. A imagem de Sedruol era muito viva em sua memória. Tinha certeza que seria reconhecido assim como a reconheceria imediatamente. Marcel já não estava tão seguro. Lembrava-se de Sedruol, porém tinha dúvidas se seria reconhecido.
Ouvindo Riaj descrever Sedruol fui esculpindo sua imagem em um pedestal virtual e já era capaz de reconhecê-la quando a visse. De estatura baixa, cintura fina e pernas grossas, Sedruol trazia, ainda, no corpo, o registro de origem dos comentários de Riaj e Marcel.
Marcel parou num posto para reabastecer o carro e Riaj ligou para Sedruol para confirmar se estávamos no caminho certo...
Sedruol estava na porta quando chegamos. Riaj, num cumprimento afetuoso dispensou apresentações. O mesmo não ocorreu com Marcel, mesmo depois de apresentado, Sedruol não havia conectado lembranças ao que, fisicamente, Marcel apresentava. Eu, que sequer fazia parte daquela história, procurei me inserir na estória brincando com Sedruol que, se não havia reconhecido Marcel, a mim, reconheceria muito menos.
Gelos à parte, uísque diluído, fomos para os primeiros goles.
Sentados em um ambiente descontraído, chamou-me a atenção uma cozinha em estilo americano que dividia o espaço com aquela pequena sala-de-estar que, em contato direto com o céu, mostrava vasos de samambaias que pendiam de uma pérgula no espaço que unia os dois ambientes.
O pêlo macio de uma pequena poodle acariciava os meus dedos enquanto Riaj e Sedruol conversavam sobre coisas do passado. Marcel pouco participava. A maciez do pelo da cadela me fez perder a audição e eu já não sabia mais do quê falavam Riaj e Sedruol. Viajei para Itabuna. Regredi vinte anos e via claramente aquelas pessoas trabalhando e interagindo com a despreocupação e a impetuosidade que a juventude nos confere.
Sedruol tentava descobrir Riaj.
De repente tudo estava conversado e iríamos para uma pizzaria.
As sombras dançavam nas paredes, numa coreografia sincronizada com as chamas das velas distribuídas nas pequenas mesas que compunham o salão de entrada onde nos sentamos. Riaj e Sedruol não paravam de falar. Sentados lado-a-lado estavam envoltos em olhares, cheios de ontem, e palavras que os transportavam para vivências e lembranças de Itabuna.
Eu e Marcel, que participávamos das conversas como ouvintes, tomamos a iniciativa e escolhemos os sabores das pizzas que eram individuais. Logo Riaj e Sedruol nos seguiram e estava tudo escolhido: pizza e cerveja.
Com o cenário pronto, a luz já adequada, os personagem nas suas marcações, foi num instante que as cortinas subiram:
Riaj, um gigante menino. Envolvia Sedruol com tentáculos manipuladores. Conduzia, determinava e por que não? Manipulava Sedruol que, na mínima tentativa de se livrar, era imediatamente forçada a voltar para os rumos estabelecidos por Riaj. Às vezes eu imaginava que ela conseguia ver através do manto de Riaj, porém, havia anos de névoa e talvez ela houvesse desistido. Riaj mantinha-se gigante com uma naturalidade e simplicidade invejáveis. Sedruol envolvida, quase embevecida naquele upload. Riaj, por sua vez, num download prazeroso e confortável.
Marcel nada via; Ouvia e, quando em vez, concordava ou discordava de alguma afirmação ou pergunta que lhe fosse dirigida. Os tentáculos de Riaj envolvendo Sedruol fundiam-se com as sombras nas paredes deixando Marcel sem a mínima condição de se situar.
Na minha cabeça passeavam conjecturas que somavam anos. Da platéia era quase impossível ver o cenário todo com o olhar fixo em um único ponto. Eu insistia. Sedruol deve ter passado sua vida tentando decifrar Riaj. Eu o tinha feito em minutos. Ela não desistia. Voltou ao passado, revolveu lembranças, insistiu em velhas perguntas e o gigante Riaj manteve-se impassível.
- E sobre seus filhos? Perguntou Sedruol.
- Você não vai querer falar sobre isto agora! Com voz firme e imperativa manifestou-se o gigante.
Sedruol recua e se entrega aos rumos de Riaj.
Marcel inquieta-se. Talvez por já ter vivido a mesma situação. Talvez porque sendo homem, compreendesse melhor as razões de Riaj. Talvez por ter notado que eu estava decifrando o código tácito da conversa. Talvez porque quisesse mais cerveja que não estava ao seu alcance...
Tentáculos a postos, Riaj conduziu até o último pedaço de pizza e o último gole de cerveja o encontro com Sedruol tendo como espectadores, a mim e Marcel.
Selamos o encontro com algumas fotos que ainda não recebi.
Sedruol não descobriu Riaj.
Se Riaj tivesse me perguntado sobre o carinho de pai eu teria respondido:
- Não me lembro de ter recebido um só beijo do meu pai.
- Para mim isso sempre foi uma coisa normal.
- Não tinha outra referência.
Yussif - Nov/03

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